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Fundamentar uma clínica existencial?

Um conhecimento é considerado verdadeiro se estiver bem fundamentado, apoiado numa base sólida. Com a palavra “fundamento” se procura significar aquilo que está na origem, na base; ou aquilo sobre o que algo se assenta, se alicerça; ou, de um modo mais abstrato as razões ou os argumentos, por exemplo, em que uma teoria está apoiada; os seus princípios; ou ainda, a causa de alguma coisa.

De qualquer modo, a noção de fundamento traz consigo a idéia de ser uma base, algo que dá sustentação, que suporta, que mantém firme. Uma boa base é o que dá a confiança necessária de que algo não vai cair, se desequilibrar, ou mesmo se desfazer. A base desta mesa, daquela escultura, daquele prédio, assim como a daquela filosofia, o alicerce daquela ciência, a estrutura daquele trabalho. E disto, por exemplo, provêm expressões como “argumentos bem embasados”, “conceitos fundamentados”, “idéia original”, “professor com conhecimento profundo” e, assim por diante.

Na idéia de base há pressuposta uma analogia espacial, onde o fundamento está no ponto mais baixo ou no mais alto do espaço. No âmbito religioso, para muitos, acima de tudo está representado um deus; nas estruturas de poder, no topo está quem dirige, quem sabe, quem decide, o chefe. Ou, a idéia correlata, daquilo que está no fundo, no mais profundo: a teoria enraizada em bases sólidas, o homem de uma sabedoria profunda. A idéia que se tem é que lá no fundo, num lugar de difícil acesso, mas existente, há algo com essa firmeza, essa solidez necessária e definitiva.

Não é incomum ouvir que um conhecimento está “ancorado na verdade”, tomando-se a âncora como símbolo do fundamento. Note-se, entretanto, que o fundamento não é a âncora, mas sim, onde a âncora está apoiada, aquele lugar que ancora a âncora. O fundamento, neste caso, é “como a terra vegetal adubada, o solo grávido, frutífero…a região que está mais funda, que dá suporte”, como diz Heidegger em “Proposição do Fundamento”. Essa região é o lugar da origem, onde tudo começa, onde o ser nasce, onde as coisas são instituídas. E onde também se dá o início do tempo. Não é difícil perceber a presença desse modo de pensar na cultura ocidental.

Um conhecimento, um saber, uma ciência dificilmente serão aceitos se não tiverem uma base sólida, um fundamento consistente, uma relação firme de dependência com a origem. Isto é pressuposto – “pré”, antes, de antemão; “su”, de baixo para cima; “posto”, colocado. Aquilo que não tem um fundamento está flutuando, disperso, difuso, ao sabor dos ventos, das contingências, vagando, incerto, sem limites, sem determinações. Tudo, todas as coisas, todas as idéias, têm uma origem, que é a sua fonte asseguradora, a verdade primitiva, inicial, o começo. Um algo que está antes no tempo e acima – ou abaixo – no espaço, sustentando tudo.

Curiosamente, a ideia de fundamento, mesmo sendo aceita de maneira universal, raramente é tematizada ou pensada criticamente.

A proposição do fundamento

A certeza de que há um fundamento foi expressa de maneira inequívoca, por Leibniz (na virada do sec 17 para o 18), na chamada proposição do fundamento, que diz:

“nada é sem fundamento” – “nihil est sine ratione”

Essa dupla negação – “nada…sem” – é que estabelece esse caráter de “necessidade inelutável” que marca uma parte importante do pensamento ocidental.

Ela tem tal força e amplitude, que mesmo ao ser enunciada, cobra que se efetive: a própria proposição do fundamento, sendo algo, deve, ela mesma, estar submetida ao que afirma, isto é, deve ter, ela mesma – proposição do fundamento – um fundamento. O fundamento da proposição do fundamento é então, entre todos os fundamentos, o fundamento por excelência, algo assim como o fundamento do fundamento. Mas não se terá que ir em direção ao fundamento do fundamento do fundamento? E assim por diante numa regressão ao infinito? Se o pensar sobre o fundamento seguir esse caminho irá cair incessantemente no carente de fundamento. Se – como diz a proposição do fundamento – tudo tem um fundamento e, se ao procurá-lo se cai numa regressão ao infinito, se poderá fundar uma perspectiva de leitura do fundamento de que, no final, nada tem fundamento.

Heidegger chama a atenção que não é por outro motivo que Leibniz caracterizou a proposição do fundamento como “principium rationis”, entendendo-se “princípium” como aquilo que contém em si a “ratio” – a razão – para outra coisa. “Principum rationis” se torna o mesmo que “ratio rationis”: a razão da razão, ou, o fundamento do fundamento. O princípio do fundamento tem, para Leibniz, na leitura de Heidegger, a natureza de um axioma: uma proposição considerada por todos como patente, certa, um “conceito-limite”. Leibniz diz: “axiomas e postulados… princípios primitivos, que não podem ser provados e, não têm necessidade disso”. E é esse caráter axiomático do axioma que traz a segurança de que as contradições ficam afastadas, que não interferem no processo de construção do conhecimento. A forma axiomática não se refere a um objeto específico, mas serve a qualquer objeto. O fundamento se torna aquilo que procura estabelecer uma unidade, uma totalidade, com a função de eliminar as contradições que a diversidade dos fatos, dos fenômenos, ou das teorias naturalmente traz.

Um objeto ao ser tomado como uma unidade, como um todo, concentra em si a promessa de uma plena determinação – cria essa ilusão. E faz isso como se estivesse restrito à sua essência, a uma objetividade do objeto, eliminando o que está fora disso. No mundo científico, em que é soberano o conceito de objetividade, a verdade só pode ser estabelecida a partir da entrega de um fundamento – ainda que este fundamento tenha em sua base a fragilidade de um axioma. Um argumento de autoridade: “é porque é”, porque alguém diz que é.

No mundo acadêmico as verdades tendem a ser produzidas circunscrevendo-se um âmbito, um campo, um universo (a Química, a Sociologia, a Física, as Artes, a Matemática, a Filosofia, a Medicina etc): dentro dessas condições, destes limites artificiais e previamente estabelecidos, com o número de variáveis controladas, será possível se aproximar de afirmações que poderão ser testadas, verificadas e confirmadas. Isto pode ser aceitável e mesmo necessário para a ampliação do entendimento e, talvez até de conhecimento de um número grande de práticas das chamadas ciências operacionais, que lidam com os aspectos materiais da vida (como a medicina, a biologia etc). Mas para a produção de conhecimentos nas áreas que tratam com os aspectos existenciais da vida humana, esses procedimentos não servem: há um tremendo equívoco. Pode ter sido louvável, em algum momento da história das universidades, buscar acolher sobre o manto quase sagrado da ciência os saberes referentes aos modos da existência humana – psíquicos, espirituais – mas, o crescente caráter normativo e padronizado de seus procedimentos, hoje mais confunde e dificulta o processo de conhecimento nessas áreas.

Na vida cotidiana, mesmo quando há uma busca do fundamento, ela costuma terminar com uma primeira resposta, muitas vezes superficial. E isso é tão comum que as pessoas mal sabem, mal se dão conta que ao perguntar “por que?”, buscam um fundamento. É muito raro que se prossiga, indo mais adiante, em buscas mais aprofundadas. Qualquer pessoa pergunta “por que?”, mas são raras aquelas que não se satisfazem com uma primeira resposta, com um primeiro “porque”.

A razão como fundamento

No dia-a-dia há um outro modo muito presente da proposição do fundamento que diz “nada é sem causa”. Ou que “não há efeito sem causa”, ou ainda que “a todo efeito lhe corresponde uma causa”. Neste caso fica clara uma relação entre algo que se toma normalmente como fenômeno presente – o efeito – e um outro algo – a causa – que o produz. Há, aqui, um tempo, um suceder que está pressuposto nesta relação: a causa, que ocorre antes, determina o efeito, que lhe sucede. Nessa relação de tempo passa a vigorar uma regra que diz que ao se tomar algo no momento presente – o efeito – sempre se está pressupondo que há algo que vem antes – a causa – e, que neste momento anterior está pressuposto algo que sempre lhe sucederá.

Essas ligações causa-efeito são determinações mentais – têm a sua realidade na mente das pessoas – que passam a ter um caráter de necessidade, isto é, que ocorrem obrigatoriamente. Como escreve Kant, na “Crítica da Razão Pura”, “…em nossas representações [que são mentais] se estabelece uma ordem na qual aquilo que é presente acena a um estado precedente qualquer como um correlato, ainda indeterminado, deste evento que é dado. Tal correlato refere-se a este evento determinando-o como sua conseqüência e, conecta-a necessariamente consigo mesmo na série temporal”. E conclui: “o que sucede ou acontece [o efeito] tem que seguir, segundo uma regra universal, ao que estava contido no estado precedente [na causa]”.

Como “causa” nomeia algo que é um fundamento, bastaria agora determinar a essência dessa razão inicial, qual a sua natureza, como ela se constitui. Por este raciocínio o fundamento ou a causa seriam constituídos por uma verdade que seria natural, uma razão última, uma espécie de verdade, auto-referida, evidente por si. Se não fosse assim essa causa ou esse fundamento deixariam de ser verdadeiros, já que verdade se define, precisamente, como algo de que não se duvida, de que se tem certeza, que é, portanto, evidente. Válida por si. Um “princípium rationes”, um axioma, no lugar da “verdade natural”, ou da “razão última”.

Em outra perspectiva, ao propor que “nihil est sine ratione” (nada é sem razão), afirma-se que tudo tem uma razão ou um fundamento ou uma causa, soando como uma constatação. Fundamento seria aquilo do qual vem o fenômeno, o que se apresenta a alguém. Toma-se como um dado, como um fato ou como uma verdade, que tudo que existe está provido de um fundamento, tem uma causa ou uma razão.

Não há, mesmo na vida cotidiana, qualquer dificuldade para se entender a afirmação da proposição do fundamento, de que tudo tem uma razão e, nem de se estar de acordo com ela.O curioso é que se entende a afirmação de que tudo tem uma razão depois que ela foi pronunciada, sem ter tido antes a experiência de receber ou de se saber de uma razão, de uma causa ou de um fundamento: sabe-se que há uma razão, uma causa, mesmo antes que uma razão se apresente.

E será este modo de ter uma confiança antecipada numa razão, numa causa que se desconhece, que engendrará o raciocínio da validade: algo será válido, terá validade, apoiado em algo que se desconhece. A segurança no valor de algo será dada pela razão que essa afirmação promete e, no limite, talvez nem tenha possibilidade de oferecer.

Razão, que se diz em latim “ratio”, é, para Kant, aquilo que é capaz de princípios, de estabelecer proposições fundamentais, de dar os fundamentos. Ao escrever a Crítica da Razão Pura ele não toma a razão para analisá-la, mas, para levar a razão a seus limites, às suas possibilidades, isto é, para estabelecer as condições sob as quais a razão pode se dar. A razão seria uma faculdade, aquilo a partir do que ela se inicia, de onde ela – razão – brota para ser como é: o fundamento da razão. Criticar não é, para ele, rechaçar, mas, colocar em relevo, ressaltar aquilo que mais importa. Estabelecer o que ele chama de “as condições de possibilidade a priori”, isto é, os critérios pelos quais algo pode ser conhecido, antes e independente da experiência, antes de experimentá-lo.

A razão estabeleceria deste modo – pela crítica, ao colocar em relevo – as condições em que um conhecimento se torna possível, isto é, ela – razão – se põe como aquilo que determina as condições de possibilidade do conhecimento das coisas no mundo. Mas a razão não fundamenta. Kant diz de modo inequívoco: “…que tudo o que acontece tem uma causa, não é de modo algum um princípio conhecido e prescrito pela razão.” A razão, mesmo se referindo a objetos “não possui nenhuma relação imediata com eles e com sua intuição, mas só com o entendimento e seus juízos… a unidade da razão não é unidade de uma experiência possível…a razão sem relação com a experiência possível, não teria podido, a partir de simples conceitos impor uma unidade sintética de tal espécie…na realidade, a multiplicidade das regras e a unidade dos princípios são uma exigência da razão para levar o entendimento a um acordo universal consigo mesmo, assim como o entendimento submete a conceitos o múltiplo da intuição, levando-a a uma conexão”.

A razão passa a ser capaz de dar os critérios para que se possa representar algo como algo, passa a ser aquilo que estabelece sentido, em última instância, aquilo que cria a possibilidade de se representar o mundo, o real. Mas quem é essa pessoa capaz desse representar?

Obrigatoriamente alguém tomado como um ser ou um “eu” racional, lugar da razão, entendido como universal, e com um caráter puro – fora da experiência. Alguém que possa colocar ante si algo que já venha como uma unidade, como uma totalidade, vale dizer, alguém que possa representar um objeto. Um objeto, esse algo completo, pleno de determinações. Este “eu” que representa este objeto, torna-se neste ato, um sujeito.

Todo outro fundamento da essência ou do ser de um ente (uma coisa no mundo) fora desta dimensão da razão pura – fora da experiência – fica excluído. O fundamento suficiente para uma coisa no mundo se torna a razão subjetivada, isto é, essa coisa se torna um objeto para um sujeito universal, ele também obrigatoriamente a priori (antes da experiência), puro (fora da experiencia). A objetividade de um objeto se funda nessa subjetividade da razão. Mas essa subjetividade é pouco subjetiva, não está limitada num homem isolado, em sua singularidade, com suas escolhas. Essa subjetividade é uma subjetividade pura, universal, dada a priori, que se estabelece como uma lei que está na essência da possibilidade de fundamentar, de constituir um objeto: não há objeto sem esse sujeito puro, fora da experiência.

Esse sujeito universal quando enuncia a proposição do fundamento, dizendo que tudo tem uma razão, tira o valor do homem singular, com suas contingências existenciais, para dar valor ao que é uno -“uma razão”- e uniforme. O homem encarnado, singular, esse que procura a terapia, que se encontra na clínica, em suas percepções, não enxerga nem escuta de um modo só e nem da mesma maneira: o mundo, muitas vezes, lhe parece diverso e, lhe aparece a cada vez de um modo – multiforme. Ele enfrenta o que lhe vem no modo que lhe é possível, a cada vez, se relaciona com as coisas do mundo, disso que lhe aparece e que ele inventa como mundo. Ele percebe, e também cria,  aquilo que emana, que vem, que se manifesta, que se mostra. Em uma palavra, percebe e cria as coisas como fenômenos, como o que lhe vem ao encontro. Ainda que se pense numa unidade dos fenômenos, esta unidade, para este homem singular, já está no mundo dos fatos, portanto, contingente, histórico, condicionado, experenciado. Não se está mais no mundo puro, a priori, universal. Este homem aqui não é um sujeito universalizável e, por isso, só pode ser atendido em suas demandas singulares, por uma clínica que se exponha ao risco da experiência, sem as defesas de teorias e outros aparatos.

A experiência como fundamento

Quando se coloca a pergunta “por que?” pede-se uma resposta, que a coisa – “res” – seja “posta”, colocada, que algo lhe seja entregue. A pergunta “por que?”, inicialmente, indicaria apenas a direção em busca da resposta, daquilo a ser entregue. Ao perguntar por que, o “por que?” – ele mesmo – não fundamenta, nem sequer sonda o fundamento, ele só indica a direção ao fundamento. O “por que?” é sem porque, não tem resposta quando se torna objeto de sua própria pergunta: o “por que?”, por si, não tem fundamento. O “por que?” indica isso que dá suporte, que dá base, que pré-está, que está lá, que no fundo causa. Isso que está lá, que se dá, que acontece, isso que é, e que é em seu próprio fundamento. Isso que promete estar lá, que com a aproximação escapa, mas que tem uma certa duração, que enquanto permanece e se demora, neste estar, é. Isso que “é” – o ser – é fugidio, é presença efêmera, é enquanto é. Isso que é o que está no fundo do fundamento, que funda, está e é só a partir de si. Ipsis.

O “por que?” enquanto se dirige ao fundamento faz perdurar o fundamento. O “por que?” faz uma indicação de que ao mesmo tempo que algo é, esse algo enquanto é, fundamenta. O ser enquanto perdura fundamenta: funda a si como fundamento. Numa linguagem direta, enquanto é, é: o ser fundamenta enquanto acontecimento. Ser e fundamento, estão supostos no “por que?”: “ambos se co-pertencem”, como diz Heidegger, ainda em Proposição do Fundamento.

O ser ter o caráter de fundamento não quer dizer que o ser tem um fundamento. Ter o caráter de fundamento quer dizer: o ser é a essência de si enquanto funda: é fundante de si. Ser “é” em essência, fundamento. E é por isso que o ser nunca pode, para começar, ter um fundamento que o fundamente fora de si. Como o ser, enquanto ser, é em si fundante, ele mesmo fica sem fundamento. O ser não cai sob o domínio da proposição do fundamento, só as coisas do mundo, os entes, os fenômenos.

Ao dizer que algo é e, que é deste ou daquele modo, o que se está fazendo é representar este algo num discurso como uma coisa do mundo. Só as coisas do mundo – os entes, os fenômenos – são: o ser mesmo, não é. O ser escapa, se esconde, se oculta.

Mesmo oculto o ser perdura. Algo que está oculto está escondido, mas continua presente. Neste registro se pode pensar na ideia de inconsciente em Freud, como algo que mesmo presente está oculto. O oculto é o que está na cena mas na parte escura, ou na ribalta, fora do foco luminoso do palco. É ao sair da ocultação, ao desocultar-se, no vir à luz que o ser guarda o que lhe é próprio, que fica momentaneamente sendo. E ao ocultar-se, perdura, enquanto ser, afinal oculto ainda é o ser que está lá como ser. E será por isso que dá para dizer que o ser, mesmo oculto ou fugidio, funda, é fundante. E daí a força instituinte dessa invenção que dá base a todo pensamento psicanalítico. O pensamento da filosofia clínica, por sua vez, traz à terapia os fenômenos humanos em um jogo de linguagem próprio e diferente, em que o ser, antes de ser oculto, é tomado como incompleto, inapreensível,  fugidio.

A pessoa, esta pessoa aqui na terapia, é enquanto está aí, em existência, comigo, terapeuta. Quando diz “eu”, diz seu modo próprio de estar no mundo. Cria, inventa seu mundo (mesmo imóvel). Funda-se. Mesmo repetindo. Ao re-pedir clama a mim a escuta de si.

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Claudio Fernandes, terapeuta, ex-psicanalista, é filósofo clínico

 

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