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Clínica não pastoral – Genisson Guimarães

Tudo o que sei acerca do método é que, quando não estou trabalhando penso as vezes que sei algo, mas quando estou trabalhando está bem claro que não sei nada.”      John Cage

 

A ideia de uma clínica não pastoral se aproxima da ideia de uma espécie de estrutura do cuidado que se dá de modo próprio (Heidegger), ou seja: ao invés de ser uma clínica conteudista, que salta para o interior da literalidade e significância da linguagem e indica, guia ou sugere (matematização da existência) os modos de ser do outro, ela se retrai, se inclina e se sustenta, no limite da linguagem, abrindo um espaço possível para a abertura de campos de sentido próprios (e não a partir dos campos de sentido pretensamente positivos da tradição) e a possibilidade da conquista de uma significatividade própria, ou seja,  liberando o outro para ser outro. É uma clínica da diferença, tomando por empréstimo o termo Deleuziano, onde a ideia de identidade é substituída pela de movimento incessante que engendra as formas a partir de si mesma. O outro é um abismo insondável, e só pode ser acessado formalmente, e qualquer tentativa de teorização a partir de estruturas teóricas apriorísticas se constitui na mais velada forma de pastoreio.

Se a escuta é, pretensamente, a principal atividade do terapeuta, como se daria a escuta em uma clínica não pastoral? Colocar-se à escuta própria da linguagem é experimentá-la para além dos hábitos da fala (o que não significa a rejeição desses hábitos) e expor-se ao domínio do estranho; tal estranheza não se dá sem a sensação por vezes claustrofóbica de angústia e solidão, pois nosso pensamento calculador e nossa linguagem habitual — imediatamente compreensível — tornam-se impotentes e falhos diante de acontecimentos inusitados que desequilibram nossos pequenos hábitos e costumes. Cabe ao clínico “não pastoral” inclinar-se e sustentar-se diante desse abismo, abrigado no espaço de intimidade (proximidade) da relação.

Uma clínica que quer estar a serviço do que existe precisa se organizar em torno de uma categoria livre, não sistemática, inassimilável, que não possa ser apropriada por nenhuma lógica operativa ou funcional. Às vezes é a categoria de natalidade, ou de começo. Às vezes é a categoria de liberdade, ou de emancipação. Às vezes é a categoria de diferença, ou de alteridade, ou de acontecimento. Às vezes é a categoria de abertura, ou de catástrofe.  Em qualquer caso, uma categoria que tem a ver com o não-saber, com o não-poder, com o não-querer, e que não se pode definir nem tornar operativo, mas sim que, de algum modo, só se pode cantar, musicar, ritmar. Há algo no que fazemos e no que nos acontece que não sabemos muito bem o que é, mas que é algo sobre o que temos vontade de falar, e de continuar falando, de cantar, e de continuar cantando. A vida viva, aberta à sua própria abertura, por vezes de modo sincopado, por vezes de modo elevado, por vezes de modo caótico…

A clínica não pastoral seria a clínica enquanto experiência, e não experimento. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade, a da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência carrega em si uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, mas sim uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer. O sujeito da experiência tem algo de um ser que atravessa e é atravessado pela existência, que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. A clínica é travessia e perigo, assim como a existência.

Se chamamos de existência a essa vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência. E tudo o que faz impossível uma clínica não pastoral faz também impossível a clínica enquanto experiência, tornando-a experimento conduzido por um ou uma terapeuta, impossibilitando, assim, que o outro seja atravessado por experiências (por meio da linguagem própria, do silenciamento do mundo? Por meio da substituição das muitas palavras do mundo pelas poucas e simples palavras do ser? Por meio da relação de intimidade entre dois indigentes?). Em um mundo pobre em experiências, como bem nos alertou Walter Benjamin, é incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre. Uma clínica não pastoral se apresenta como uma clínica que luta com ardor, diante e ciente da dificuldade imanente a tal clinicar, para que experiências se tornem possíveis em meio ao que denominamos terapia, essa experiência tornada experimento pela tradição.

 

“E qual é o propósito de escrever música? Um, claro, é o de não lidar com propósitos, mas com sons. Ou a resposta pode ser dada sob a forma de um paradoxo: um despropósito proposital ou uma brincadeira sem propósito. Essa brincadeira, contudo, é uma afirmação da vida – não uma tentativa de dar ordem ao caos, nem de tentar melhorar a criação, mas simplesmente um modo de despertar para a própria vida que vivemos, que é tão boa se tiramos de seu caminho o nosso intelecto e o nosso desejo, deixando-a agir a seu modo.”        John Cage

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