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Civilidade, Urbanismo, a tênue tensão da conversação

Civilidade, Urbanismo, a tênue tensão da conversação

Estava no aeroporto internacional Afonso Penna, em Curitiba, em uma mesa no Café Damasco, lendo, tomando meu `espresso`, aguardando o voo após um ciclo de palestras que fiz na cidade. Virei uma página e no topo da página, em letras grandes, havia uma chamada sobre o Marco Civil, um projeto de lei que cobre de responsabilidades usuários da Internet. Trata-se de um anteprojeto anunciado pelo Ministério da Justiça estabelecendo as responsabilidades e os direitos de quem navega.

À mesa ao lado, uma senhora, idade indefinível, tomava um chá em perfeita quietude. Estava a caminho de São Paulo, sua filha teria um bebê nos próximos dias e ela falava calmamente que então em breve seria avó. Conversas assim são comuns no deserto de compartimentos de embarques entre pessoas civilizadas. Comentei com ela o que estava lendo no jornal, parte desta civilidade de respeito mútuo e consideração, e forma usual de se prosseguir uma conversação informal, ao que ela observou ter notado, dada a proximidade de nossas mesas.

A conversa então tomou outro rumo, uma vez que as formalidades iniciais de aproximação foram ultrapassadas. Ela me disse que algo como o Marco Civil deveria ser anunciado para o uso dos celulares em lugares públicos. Você está sentado a algumas polegadas de um sujeito, quando toca o celular dele; pela música de chamada, os acordes iniciais joviais de uma canção caribenha, sabe-se que aproximadamente como ele vai atender. Ele atende, fala para o telefone e para o saguão inteiro sobre assuntos que só dizem respeito a ele. Ficamos sabendo que ele não vai fechar um negócio porque uma duplicata não veio. Ninguém tem nada com isso, o usuário do celular, que ignora todos ao redor enquanto fala altíssimo, diz uma gracinha aqui e ali, expõe sem cerimônia o que ninguém quer saber. É isso o que ela quis dizer.

Fiquei pensando se junto com aqueles manuais de instruções, que para mim são inúteis e confusos, que vem na caixinha do celular, fiquei pensando se não poderiam colocar orientações de etiqueta do uso. Coisas simples como não gritar com o aparelho, não caminhar gesticulando e blasfemando em saguões de aeroportos, atender dizendo um alô – ao invés de um ´fala´; enfim, coisas bem simples. Ela concordou. Concordamos. Ficamos mais amigos por isso. E foi então que tocou o celular dela. Toque suave, musiquinha para início de noite ou de outono, e acho que ambos pensamos por um segundo que a música que toca em nossos aparelhos dizem algo de nós. Consideração filosófica para aquele momento, pois enquanto o aparelho tocava ficamos em silêncio diante da questão. E, então, ela atenderia? Deixaria tocar até que uma mensagem fosse encaminhada para a caixa postal? O que faria depois de nosso colóquio sobre o Marco Civil? Olhei para a Bookstore Laselva que abria, funcionários chegando. Atendesse ela de forma indelicada ou diferente do que implicitamente foi combinado em nossa curta troca de opiniões e nossa amizade recente sofreria um irremediável abalo.

Mas ela suave e resolutamente resolveu tudo atendendo com um alô, seguido de breves palavras proferidas sem pressa, indicando que chegaria em um horário razoável para os envolvidos, que já providenciara um modo de condução, agradeceu, despediu-se com a emoção apropriada para o ambiente do qual falava. Dobrou o aparelho e o colocou no suporte em sua bolsa, tudo de muito bom gosto, para nosso enlevo. Um momento delicado como este não se resolve facilmente sem boa vontade das partes.

O serviço de voz do aeroporto anunciou a primeira chamada de meu voo. Guardei meu jornal entre uns livros, verifiquei a perfeita ordem e simetria em minha mesa, agradeci a companhia, desejei a ela os melhores votos em São Paulo, levantei-me e segui meu caminho.

Enquanto me afastava em direção ao portão de embarque, fiquei pensando no Marco Civil, que de fato ele deveria envolver o uso dos celulares, deveria também ser estendido a quem compra uma motocicleta, deveria ser essencialmente adotado por todos os usuários de computador.
artigo publicado na edição 47 da revista Filosofia, da Editora Escala.

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