As coisas continuadas
Ela dizia que era importante você ter bons amigos e compreendia quando em um sábado à tarde você jogava futebol suíço na quadra de grama. Ela sabia que você só tinha Santos no sobrenome, herdado de sua avó, e que um passado bravo de mulherio e bebidas destiladas acompanhava a cicatriz em seu queixo. Ela tinha isso em certo deleite. Assim como quando você viajou por dois meses pelos escarpados chãos das encostas das serras; o celular recebia mensagens de incentivos e coisas de Power Point. E ela gostava daquele primo que somente você gostava, um sujeito de difícil trato. E você acreditou que seria para sempre, que ela adoraria viver naquele pequeno apartamento de fundo, sem sol, com você. A imagem que lhe vinha era daquela mulher linda, vestindo a sua camiseta somente, parada diante do horror de sua geladeira aberta com um semi sorriso de condescendência no rosto. Você acreditou, Fernando, acreditou que Márcia lhe asseguraria isso para sempre, sempre dali para algo melhor, como mais tempo para o futebol e uma geladeira ainda mais sem nada dentro.
Como você ignorou que se tratava de um capítulo entre o se conhecerem e os compromissos de casamento e filhos, sua vida, que estaria perfeita se aquele capítulo durasse para sempre, tornou-se toda ao contrário no capítulo seguinte.
Você e Márcia encontraram-se no capítulo II, que para você seria o final, que para ela seria prefácio ao capítulo III. Você não sabia que estava se casando com a Márcia do capítulo III e ela também não.
Com o divórcio, 5 anos depois, você então encontrou na cantina uma Márcia com outro nome, outra cor, outro sotaque, formada em Economia, uma outra Márcia, e soube que ela estava no capítulo II, mas agora você tinha 55 anos, havia comprado uma motocicleta com um número importante de cilindros, estava desejoso do capítulo III.
artigo publicado na edição 46 da revista Filosofia, da Editora Escala