Dentre as múltiplas vozes que habitam a clínica não pastoral, a voz silenciosa – a voz
sem voz do mistério – figura como condição imanente à uma clínica que não se pretende
desveladora do estranhamento que nos atravessa enquanto seres que existem. A clínica sem
lacunas, debitaria do pensamento freudiano e do conceito de inconsciente – signatárias da
relação de causa e efeito – busca explicitar e fundamentar o que não é passível de
fundamentação. Existir ultrapassa qualquer conceito, como bem disse Clarice Lispector. Por
outro lado, a linguagem é nossa morada, como citou Heidegger, e é com ela que nos
havemos a todo instante.
Clarice, com sua escrita transbordante de poesia, e Heidegger, com sua reflexão
filosófica, pensaram a linguagem na dimensão do estranhamento, fato provocador para que
o homem possa experimentar a linguagem para além dos signos linguísticos desconectados
da existência. A linguagem, a partir dessas duas compreensões, é um espaço de invenção,
onde todas as potencialidades do indivíduo são despertadas para dizer o mundo e a vida na
contingência das palavras. Ambos pensaram a linguagem fora dos padrões linguísticos e
aproximaram, com isso, a filosofia da poesia, sem, no entanto, descaracterizar a linguagem
de cada uma. A linguagem poética é pensada como o caminho que nos leva de volta para o
sentido genuíno da existência, um sentido subjetivo que ultrapassa a trivialidade de nosso
cotidiano.
Um acontecimento nunca cabe no que nós queremos dizer. Há uma dimensão do
escrever e do dizer que não subsiste para provar, para demonstrar ou para esclarecer, mas
para existir no limite da linguagem, no limite do que há verdadeiramente para dizer.
Busca-se algo que escapa ao entendimento, o que não quer dizer que escapa ao ser singular.
Os fatos, narrados por meio dos modos convencionais do pensamento linear e do modelo
re-cognitivo, trazem a marca da ânsia das informações precisas, locupletadas por
significações estandardizadas pela tradição. Os acontecimentos, por sua vez, se
desenvolvem a partir do fundo vazio e da liberdade que faz vir à tona o caos criador das
palavras.
Os mistérios que nos habitam em silêncio são acontecimentos transfiguradores que
extrapolam os fatos reais em uma desorganização na ordem. E na cadência antimelódica dos
acontecimentos silenciosos e velados de nossa existência, o mistério irrompe em fascínio e
improviso, descosturando o há muito costurado, fraturando o há muito engessado,
“desmundanizando” o há muito “mundanizado”.
Uma clínica não pastoral é uma clínica cuja estrutura do cuidado se dá de modo
próprio, ou seja: ao invés de ser uma clínica conteudista, que salta para o interior da
literalidade e significância da linguagem e indica, guia ou sugere os modos de ser do outro,
ela se retrai, se inclina e se sustenta, no limite da linguagem, abrindo um espaço possível
onde a possibilidade para a possibilidade da concretização seja conquistada por si mesma a
partir da conquista do próprio. É uma clínica da diferença, tomando por empréstimo o termo
Deleuziano, onde a ideia de identidade é substituída pelo movimento incessante que
engendra as formas a partir de si mesma. O outro é um abismo insondável, e só pode ser
acessado formalmente, e qualquer tentativa de teorização a partir de estruturas teóricas
apriorísticas se constitui na mais velada forma de pastoreio.
Colocar-se à escuta própria da linguagem é experimentá-la para além dos hábitos da
fala e expor-se ao domínio do estranho; tal estranheza não se dá sem a sensação por vezes
claustrofóbica de angústia e solidão, pois nosso pensamento calculador e nossa linguagem
habitual — imediatamente compreensível — tornam-se impotentes e falhos diante de acontecimentos inusitados que desequilibram nossos pequenos hábitos e costumes. A
linguagem poética experimentada nas obras de Clarice e pensada nas obras de Heidegger é
a linguagem irreversivelmente estranha, pois ela não nos serve para prestarmos conta sobre
nossa existência, não nos fornece nenhuma informação sobre os entes, não nos ajuda a
resolver e nem dizer nada de importante para os negócios humanos, não causa nenhum
efeito; não classifica nada, não nos diz o que é o bem e nem o que é o mal, escapando,
assim, de toda justificação teórica ou moral. Desse modo, habita-se a linguagem e se tende,
por excelência, a construir, edificar e a criar no sentido de poiesis. Nesse sentido, é a
linguagem quem nos domina.
Experimentar a linguagem como linguagem é colocar-se no vazio e ser tocado pelo
nada de si mesmo. Desse modo, escapa-se, mesmo que por instantes, dos falatórios que
exprimem a compreensão mediana que tudo compreende sem nada compreender
propriamente, fechando a possibilidade de um dizer, de um escrever, de um ler e de um
escutar atento à voz da linguagem originária. Pensar em nada, ainda mais em tempos de
pensamento acelerado, é uma conquista de compreensão existencial da linguagem.
Concluindo, a literatura de Clarice Lispector e a filosofia de Martin Heidegger
assumem a exigência de penetrar na essência da linguagem mediante o apelo da própria
linguagem, liberando a linguagem enquanto possibilidade para ascender ao impenetrável
que se oculta na própria linguagem. E tomando o mistério como a mais alta expressão da
verdade, abre-se caminho para uma clínica que respeite a abissal distância que nos separa
do outro, esse ser que habita a linguagem e que por meio dos limites da mesma pode
reconquistar-se a si mesmo. Cabe ao clínico “não pastoral” inclinar-se e sustentar-se diante
desse abismo, mas sempre abrigado no espaço de intimidade da relação.
Genisson Angelo Guimarães (escritor, médico, filósofo clínico, prof Recanto da Filosofia Clínica)
Referências
BEZERRA, Cícero. Clarice Lispector: quando Deus acontece. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante
Schuback.
Petrópolis: Vozes, 2003.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback.
Petrópolis: Vozes, 1993. Parte I.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves
Editora,1997.
LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético; Filosofia e poesia em Martin Heidegger. São
Paulo: Ática, 1992