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A colcha de retalhos na Filosofia Clínica

A colcha de retalhos na filosofia clínica

A filosofia clínica traz para o campo semântico da clínica existencial algumas tradições importantes da filosofia ocidental. Traz consigo as suas linguagens.

Ela não é e não faz propriamente filosofia, assim como não faz metafísica, ontologia, fenomenologia ou hermenêutica. Não é uma clínica provinda de protocolos estatísticos, “indistinta”. Institui-se como filosofia clínica, como um modo próprio em que a separação de seus termos – filosofia e clínica – desfaz a possibilidade de sua compreensão. Mas não será por isso que se absterá de lidar com fenômenos, teorias, ou linguagens diferentes. E nessa lida, por diferenças, se dá a perceber, faz afirmações. Certamente, tem modos pressupostos de ver o mundo, mas não se institui como modo de ver o mundo. Ela não é ciência, não é filosofia. Não é e não se pretende uma teoria do conhecimento. O que lhe é próprio surge, vive, se transforma e se destina em campo semântico próprio, campo dessa relação humana peculiar – a clínica.

Lúcio Packter, que inicialmente a concebeu, usa a bonita imagem da colcha de retalhos para descrever a diversidade de influências epistemológicas da filosofia clínica: “…é extremamente eclética, é uma grande colcha de retalhos na qual as escolas estão em conversação…e o critério para dizer qual irá se destacar e qual irá deixar a desejar é simplesmente o que nós encontramos lá na história da pessoa”. A colocação é precisa: há na filosofia clínica uma conversa entre diversas tradições da filosofia. “Conversar” é trazer as falas das pessoas, as suas versões de observação do mundo, para um lugar em comum. E, além disso, tem também o curioso sentido de “conviver, morar, residir”. Diferentes tradições e pensamentos podem conviver em um método, oferecendo ao clínico a opção de iluminar o caminho, com a luz mais adequada a cada passo.

Karl Jaspers, o pai da psicopatologia, ao elaborar as suas teorias sobre as doenças psíquicas e suas possibilidades de tratamento, defendia que no plano “científico” há de haver a “liberdade para todas as possibilidades da investigação empírica,[para a] defesa contra o desvio de querer por a humanidade sob um só denominador. No lugar de discutir um esboço do todo, deve-se preferir aqueles horizontes em que a nossa realidade psíquica se apresenta” . Ainda que não se acompanhe as suas escolhas, esse pedido de princípio à diversidade de “horizontes” é importante, significativo.

No campo clínico, a influência da diversidade de horizontes permite apreender a experiência por diferentes ângulos, estabelecendo o foco ou a ênfase, hora num aspecto, hora noutro. Cada tradição filosófica tem uma maneira de olhar, de captar as experiências, dando oportunidade de organizar modos distintos de escuta. A conexão entre as partes dessas tradições é feita a partir da utilidade prática nos modos de apreensão do relato da pessoa. Não há razão para se buscar uma unidade ou uma coerência entre os elementos do método fora das exigências da clínica, apenas para atender aos deuses do âmbito metafísico ou do mundo universitário. Um método é um “caminho para” – “odos” e “meta”- e sua organização se dá no enfrentamento das exigências do próprio caminhar: se tiver bons instrumentos, companheiros de viagem experientes e boas indicações no percurso, melhor será para o caminhante.

Por que não trazer, como faz a filosofia clínica, aspectos do pensamento de Protágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Hume, Schopenhauer, Marx, Dilthey, Husserl, Whitehead, Peirce, Wittgenstein, Heidegger, Foucault, Merleau-Ponty, Ricoeur, Agamben e…? Para fazê-los presentes, através dos modos de leitura do clínico e de suas formas de ver o mundo, o ser humano, esta pessoa em sua contingência?

A psicanálise, uma clínica consequente e experimentada, fez e faz o seu percurso de modo diferente, desde que foi “criada” por Freud. Nos últimos 100 anos, a partir da prática clínica, da reflexão sobre ela e, da incorporação de outras tradições, muitos psicanalistas criaram “escolas”, “linhas”, “tendências”, numa diversidade enorme de modos de compreensão do que é a psicanálise. A Adler, Abraham, Anna Freud, E Jones, Ferenczi, Hartmann, Jung, W. Reich, O Fenichel, Kohut, Karen Horney, Melanie Klein, Bion, Kris, Lowenstein, Lacan, Winicott, para ficar nos principais. E todos esses modos de compreensão não desfiguram aquilo que lhes é essencial: “A psicanálise é o que se passa em análise. Num divã, alguém fala, em princípio, sem qualquer retenção. Numa poltrona, alguém escuta, em princípio sem qualquer idéia preconcebida. Daí é que se precisa partir, é aí que é preciso permanecer”, como tão claramente define o psicanalista frances Jean-Bertrand Pontalis. Há muita diversidade de referências mas o pensamento inaugural continua lá: Freud.

O filósofo clínico Will Goya observa com perspicácia que “o psicanalista é alguém que verdadeiramente sabe ouvir… mas com os ouvidos da psicanálise”. E isto é muito importante de se notar, uma vez que o psicanalista em sua prática clínica não pode prescindir daquilo que o teórico da psicanálise, Renato Mezan, nomeia como uma “teoria portátil”. Cada uma das “escolas” psicanalíticas é resultado da explicitação de diferenças teóricas surgidas em confrontações que em algum momento surgiram a seus protagonistas como inconciliáveis. “Mas ainda assim o analista continua analista, embora fazendo semblante de saberes muito diferentes dos que Freud fazia”, como nos lembra o psicanalista paulista Marcio Peter. Ele continua a exercer seu ofício ainda que tratando com linguagens, teorias e uma infinidade de questões trazidas pelo exercício clínico. O psicanalista ouve com os ouvidos dessas psicanálises que se fazem e se refazem a partir de sua própria prática, mas sempre com algum grau de reverência à “teoria portátil”.

Mesmo adotando uma “atenção flutuante”, o psicanalista faz a sua experiência clínica com a sua “teoria portátil”. Ela é um amálgama de vivências próprias com as teorias e as interpretações de outras experiências, em busca de uma universalidade que não se realiza. A prática as devora, tira-lhe o sentido, exige e não consegue oferecer uma resposta unívoca. “Cada caso exige uma terapia diferente… a psicoterapia é tão diversa como os indivíduos…não é possível estabelecer regras gerais…cada doente exige o emprego de uma linguagem diversa”, como tão bem escreveu Gustav Jung, um psicanalista de primeira hora e de tantos talentos.

Na filosofia clínica o terapeuta não se utiliza de uma “teoria portátil” no exercício da escuta. Ele simplesmente escuta, numa “despreocupação atenta”, como ensina o filósofo clínico Hélio Strassburger, no desafio constante de silenciar seus sabidos e inevitáveis preconceitos.

Estes modos de proceder dos filósofos clínicos e dos psicanalistas, têm uma natureza próximos dos da arte e muito distantes dos da técnica. São mais convivências com sentidos pré-estabelecidos, caminhos partilhados, do que “técnicas de ajuda”. Os saberes das experiências humanas estão entranhadas e são produzidas em plena con-vivência, não sendo algo estranho a elas, vindos de fora – como a técnica – que os organiza, como um a priori. Os princípios são éticos e não de resultados ou de objetivos genéricos, como “curar”, apaziguar angústias, prover bem estar e outros. Sensibilidade e tolerância à incerteza no lugar de “perícia” e “pressuposições”.

A filosofia clínica em sua prática de cuidado se aproxima mais dos movimentos do fazer artístico. Próxima daquilo que o artista plástico paulista Sérgio Fingermann traz em um momento de sua reflexão sobre um quadro familiar: “..será a luz (da tarde) o acontecimento daquela pintura? Será que o acontecimento ali é o silencio que habita aquela cena ensombreada? Aquela luz da tarde precede a noite que chegará com suas sombras e encobrirá tudo. Falta alguma coisa ali, alguma coisa antecede a imagem se fazer como compreensão. Aquela pintura não comunica o conteúdo de um pensamento, ela nos faz prisioneiros de uma “voz” que é portadora de uma tonalidade afetiva. É poesia subentendida. O tema da pintura é passagem, caminho lugar destinado ao transito de um para outro ponto. É um convite para irmos aonde? Aquela pintura é passagem…”. Ela não é em sua natureza uma técnica, é um modo de escuta.

A filosofia clinica é plástica, de saída. Conjunto de hipóteses articuladas entre si com a finalidade de oferecer perspectivas diferentes para facilitar a apreensão dos sentidos emitidos pela pessoa, por mais contraditórios que se apresentem ao olhar de quem observa. Com isto se forma um campo semântico próprio, peculiar e abrangente. Cada clínico aprende à sua maneira: por leituras, estudos em comum, aulas, trocas com outros profissionais, práticas supervisionadas, assimilando noções, hipóteses, de modo mais ou menos sistemático, meditado, refletido.As inumeráveis possibilidades de combinação oferecidas ao clínico, a partir dessas tradições da filosofia são um traço importante da filosofia clínica. Privilegiar, a priori uma tradição, talvez seja útil para evitar a dispersão especulativa nos trabalhos, predominantemente abstratos, filosóficos ou das teorias científicas, mas, de modo algum a um caminho clínico, que em sua constituição e natureza lida com as pessoas em seus infinitos modos singulares.

A colcha de retalhos das tradições filosóficas mobilizadas pela filosofia clínica dá condições para surgir o inédito: uma clínica da experiência singular. Que já parte do singular. Tateado e firme, incerto e rigoroso. Quem está na lida clínica sabe como isto é precioso.

Cláudio Fernandes, terapeuta, ex-psicanalista, filósofo clínico
membro do Recanto da Filosofia Clínica e do CNAA-ANFIC (www.recantodafilosofiaclinica.com.br)([email protected])

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